Como já contei pra vocês, minhas famílias têm origens árabes. Morando em Barcelona há mais de dois anos, fiquei sem os almoços da minha mãe e sem as visitas ao Lagash — deli árabe tocada pelas minhas tias em Brasília. Logo, fui obrigada a pôr em prática um plano que se arrastava há anos: o de aprender a cozinhar tal receituário. Quem mora fora sabe como é.
Juntos, aqui na newsletter, já fizemos coalhada, homus, tabule, arroz bi’sharieh (ou arroz com macarrãozinho), frango com especiarias e molho de tahine e berinjelas assadas com cebola frita. Hoje dou mais um passo nos meus (e nos nossos) aprendizados: quibe. Achei que seria muito atrevimento começar de cara com o quibe cru (kibbeh nayyeh), já que o da minha mãe é perfeito. Aliás, vocês também têm receio de se aventurar em receitas que sua mãe, pai ou alguém da família faz com maestria?
Carne pode adicionar uma camada de complexidade a algumas receitas, ainda mais quando crua. Que corte usar? Está limpa o suficiente (leia-se: sem nada de gordura)? Há de se achar a proporção certa de trigo para carne (que é bem diferente entre as receitas árabes originais e as nossas no Brasil), moer todos juntos adicionando cebola e hortelã, sendo que eu nem tenho moedor de carne. A maioria das pessoas não tem moedor de carne!
Juntando todas essas questões à redução no consumo de proteína animal, mirei num quibe vegetariano e acabei acertando em um vegano — que sorte! Fato é que, buscando por receitas de quibe de batata em português, 100% das respostas vieram em forma de quibe assado. Resolvi me embrenhar numa internet mais profunda e é uma pena eu não saber falar árabe — das aulas que fiz por um ano, só me restou a musiquinha do alfabeto. Ainda assim, achei coisas muito legais que me levaram a esse Kibbet batata.
Em casa, quibe sempre teve carne. Então, essa não é uma receita familiar que vem sendo passada de geração para geração, mas espero que passe a ser de mim em diante. Falta só a minha filha de três anos, hiperseletiva, passar a gostar de qualquer tipo de batata que não seja frita.
Até a próxima news,
Lena
*Expressão árabe que pode ser traduzida como “fácil como um copo de água”, o equivalente ao nosso “mamão com açúcar”. (Fonte)
QUIBE DE BATATA (KIBBET BATATA)
O quibe é comido em toda região levantina, mas é considerado um prato nacional da Síria e do Líbano. O mais conhecido é o feito com carne e trigo, servido cru, assado ou frito. Mas variações com peixe, batata e abóbora são ótimas pedidas. Inclusive, o de abóbora já está no meu radar para uma edição futura.
CURIOSIDADE
Mesmo quem não vem de família de origem árabe, pode ter alguma familiaridade com este receituário. Isso porque o Brasil tem a maior comunidade libanesa do mundo: em torno de 8 milhões de pessoas que variam entre cidadãos libaneses e descendentes, segundo a Associação Cultural Brasil-Líbano. Isso é mais que a própria população do Líbano, que tem cerca de 5,5 milhões de habitantes.*
Dentro do receituário árabe, acredito que o quibe e a esfiha sejam os mais difundidos entre nós. Temos marcas de grande alcance como a Yoki vendendo “trigo para quibe” — que eu encontro para comprar até em Barcelona — e redes de fastfood especializadas, como a Habib’s, que se fez a partir das esfihas — umas de sabor tradicionais e outras com sabores que vão pra lá de Bagdá!
Coalhada e homus também já são bem conhecidos — sobretudo o homus, ao ganhar espaço privilegiado no universo da alimentação saudável e figurar em muitos “bowls” mundo afora.
NATURALMENTE VEGANA
A culinária árabe tem muitos pratos que são “naturalmente” veganos. O que eu quero dizer é que são pratos que desde sempre foram assim, sem terem sido criados ou alterados para atender uma demanda atual por receitas sem carne, ovos e derivados do leite. Culinária árabe é um prato cheio pra quem gosta de vegetais!
ATENÇÃO AOS TEMPEROS ÁRABES!
Os pratos árabes usam e abusam de especiarias e de algumas combinações delas como o Baharat, Sete especiarias ou Ras el Hanout. No Brasil, não estamos muito familiarizados com o Kamouneh, mas ele é comumente usado para temperar diversos quibes. Ele leva uma série de ingredientes: semente de cominho, pimenta-do-reino, manjerona seca, manjericão seco, hortelã seca, canela, sal, botões de mini rosas secos e um pouco de sete especiarias.
O tempero Sete especiarias por sua vez, leva: pimenta-da-jamaica, pimenta-do-reino, canela, cúrcuma, páprica, coentro em pó, cominho e pimenta-caiena. Posso complicar um pouco mais? As sete especiarias são o Baharat que foi acrescido de coentro e cominho em pó.
Eu sei, é um pouco confuso no começo mesmo, mas é importante nos atermos a esses temperos porque ELES FAZEM TODA DIFERENÇA. E fiquem tranquilos que a receita de hoje usa “apenas” as sete especiarias.
Temos ainda o sumac ou sumagre, um tempero feito a partir das bagas da planta de mesmo nome e que resulta em um pó de cor bordô-escuro e com sabor marcante, terroso e levemente ácido — uma delícia! E, por último, mas não menos importante, temos o melaço de romã — um suco de romã superconcentrado que virou um xarope agridoce. Tenham uma garrafinha disso na bancada da cozinha, pois ele torna tudo mais gostoso. Usem na carne moída, no vinagrete, nas lentilhas cozidas... Mas dê preferência para aqueles que não têm açúcar adicionado.
COMO SERVIR O QUIBE DE BATATA
Ele é gostoso quando servido em temperatura ambiente ou levemente frio. Não queremos nem morno, nem muito gelado, recém-saído da geladeira. Acho que de um dia para o outro ele ganha em termos de sabor. Então, é daquelas receitas boas de servir em uma jantar para amigos porque você pode fazer no dia anterior e não fica com tudo para ser feito num mesmo dia.
Você pode adicioná-lo ao mezze** como faria com o quibe cru de carne. Se servir com homus, babaganuche e tabule você terá um mezze todo vegano. Sirva com pão pita natural ou tostado, regado com azeite e com folhas de hortelã. Um pouco de pimenta-do-reino moída na hora faz uma boa diferença.
Aqui em casa, servi o quibe com pão e alguns picles que eu mesma tinha feito: de tomate verde e de ovos. Foi um almoço frugal e delicioso.
**Mezze (também escrito meze ou mezé) é uma seleção de pequenos pratos servidos como aperitivos nas culinárias árabe e da Ásia Ocidental: Síria, Iraque, Líbano, Palestina, Jordânia, Arábia Saudita, Turquia, Irã, Armênia. Um meze pode ser servido como parte de uma refeição com vários pratos ou formar uma refeição por si só.
Para acompanhar | Repercussão das leis anti-imigração nos restaurantes americanos
Donald Trump mal assumiu o cargo como presidente dos Estados Unidos e já começou sua perseguição aos imigrantes. Além de todo o pânico e sofrimento humano causado, muita gente vem levantando a bola de como isso vai afetar o setor de gastronomia e restauração. Isso porque dentre todas as profissões, as da cozinha são as que envolvem menos barreiras de entrada para aqueles recém-chegados a determinado lugar, que muitas vezes sequer falam o idioma local. A comida e o cozinhar são uma língua universal. Claro que a isso se soma as dificuldades do trabalho — que envolve longas e duras jornadas — e má remuneração. Ou seja, muitas dessas vagas são preenchidas por quem precisa de trabalho e não pode se dar ao luxo de escolher. O trabalho de imigrantes, autorizados ou não, é essencial para o mercado de restaurantes.

O jornalista Rafael Tonon falou sobre o tema em sua coluna no Nossa UOL, relatando que desde a semana passada alguns restaurantes, nos EUA, não conseguiram abrir suas portas por falta de funcionários que, com medo de serem presos, não foram trabalhar: “É um número estarrecedor para pensarmos que, sem imigração, não há restauração. Na América, na Europa, e até mesmo em países asiáticos, não poderíamos sair para comer se não fosse o trabalho ou o empreendedorismo dos imigrantes.”
O site americano Eater, contou sobre o “Day Without Immigrants” [Dia sem imigrantes] que fechou restaurantes no país todo em sinal de protesto às medidas do presidente e de solidariedade aos imigrantes. Essa é a segunda vez que essa mobilização acontece no país, a primeira tendo ocorrido em 2017 quando Trump anunciou a construção de um muro entre os Estados Unidos e o México.
É sempre bom lembrar que mais do que nos oferecer comida, “os restaurantes geridos por imigrantes representam resiliência, inovação e a rica troca cultural que define a gastronomia”, como bem colocou Tonon.
Para ler | Renata Vanzetto na capa da revista Cláudia
Não é todo dia que uma grande publicação feminina tem uma chef de cozinha na capa! No mês de janeiro, a revista Cláudia trouxe Renata Vanzetto em um ótimo texto assinado por Luiza Fecarotta para narrar os feitos da chef. Me chamou muito a atenção essa sua frase: “Não tenho a menor pretensão de ser uma superchef. Quero ter restaurantes legais e ser feliz”.
Acho admirável a coragem de se posicionar, de maneira tão sincera, atuando em um mercado tão competitivo e em que se é tão julgado o tempo todo e medido por prêmios.
Nessa de querer ter restaurantes legais, Renata já soma doze empreendimentos. E seu grupo Ema não para de crescer: apesar do anúncio do fechamento do Ema — seu restaurante mais autoral — já anuncia a abertura de uma nova doceria. As fotos, feitas na Ilhabela, são lindas.
Para relembrar e rir | “Harry & Sally — feitos um para o outro” 35 anos depois
O Super Bowl 2025 está chegando e, com ele, os esperados comerciais do intervalo. As brincadeiras custam caro, mas é quando a publicidade mostra seu potencial para ser realmente engraçada e inteligente, pois conta com roteiros mais interessantes, boas ideias, superproduções e bons atores.
A maionese Hellmann's chamou Billy Crystal e Meg Ryan para interpretarem mais uma vez Harry e Sally, 35 anos depois do lançamento do filme “Harry & Sally — feitos um para o outro” [When Harry meets Sally]. Eles recriaram a icônica cena em que os dois estão comendo na Katz’s Deli e Sally finge um orgasmo.
Para ver uma divertida comparação simultânea da versão original e do remake, clique aqui.
E se você achou que ela estava comendo o famoso sanduíche de pastrami da Katz (talvez um dos sanduíches mais famosos de Nova York, senão o mais famoso), errou. Sally estava comendo um sanduíche de peito de peru num pão branco. Leia mais sobre o pedido dela neste texto do Tasting Table.
Para assistir | Alex Atala no Roda Viva
No mês passado, o chef Alex Atala esteve no centro do Roda Viva, na TV Cultura. Num papo que durou uma hora e meia, Alex respondeu às perguntas dos entrevistadores. O painel foi composto por: “Arnaldo Lorençato, editor-executivo da revista Veja São Paulo; Larissa Januário, jornalista e apresentadora do canal Sabor & Arte; Luiza Fecarotta, jornalista, curadora gastronômica e colunista da Rádio CBN; Marcos Nogueira, autor da coluna Cozinha Bruta, da Folha de S.Paulo e Vivian Mesquita, editora-chefe de Paladar, do jornal O Estado de S. Paulo.”
Valeu e até a próxima, pessoal!
“Fui até o site da Oreo e cliquei em “aceitar todos os cookies”... e agora a gente espera.”
Créditos:
Revisão: Eloah Pina
Aqui também tenho dois pequenos que não comem batatas (com exceção das fritas). Essa questão sensorial às vezes me incomoda, mas eu tento expô-los aos pouquinhos.
Eu morei num país árabe por muitos anos, mesmo em São Paulo tinha acesso a ingredientes e restaurantes que não tenho, agora que moro no Sul. Minha vida é recriar sabores, estocar temperos e condimentos em viagens e tentar reproduzir as receitas que aprendi com amigas e, algumas, com as mães delas. Amo esse exercício de recriar sabores, mesmo porque acabei ficando muito exigente. A sua partilha me ajuda muito a entender o caminho das pedras, muito obrigada.
Também sou de família árabe e me identifico demais quando você escreve sobre crescer com esses sabores e tentar recriá-los em países diferentes com outros ingredientes <3 amo suas cartas!