Pão: sem sova, mas com paciência e humildade
"Um bom pão é o mais satisfatório de todos os alimentos; e um bom pão com manteiga fresca, o maior dos banquetes.”* — James Beard
Já faz anos que eu, como muita gente que gosta de cozinhar, flerto com receitas de pão. Fiz uma aqui e uma ali, mas passei quase dez anos sem olhar para eles. Segui comendo muitos pães, claro, mas nunca os que eu mesma tinha feito. Passei ilesa até mesmo durante a pandemia. Recentemente, porém, senti uma estranha urgência de fazer meu próprio pão.
Lá pelos idos de 2014, fiz minhas primeiras investidas, mas a verdade é que não sabia muito bem o que eu estava fazendo. Não tinha lido muito a respeito e estava apenas muito ansiosa pelo meu próprio pão. Mas nada como o tempo para nos ensinar. Desta vez comecei a ler sobre o assunto antes mesmo de ter um fermento. O livro eleito foi o Tartine Bread, escrito por Chad Robertson, padeiro e fundador da badalada Tartine Bakery, em Los Angeles. Li e reli muitas vezes os primeiros capítulos e vi vários vídeos para não só entender melhor os processos sobre os quais li, mas para ver os movimentos das mãos.
Afinal, se tem uma coisa que eu entendi fazendo o curso de cozinha é que para cozinhar melhor não basta conhecer as técnicas, as receitas, os ingredientes e os sabores propriamente ditos, mas é preciso aprender sobre o tempo e os gestos, treinar as mãos e a intuição para ambos, fazer com que seu corpo saiba fazer os movimentos certo no tempo certo sem ter que racionalizar isso. É como aprender a dirigir. Uma hora você apenas dirige sem que sua cabeça precise ficar ditando "agora pisa na embreagem e passe a marcha; agora acelera, mas não muito! E não se esqueça de olhar nos dois retrovisores antes". O pão, mais do que muitos preparos culinários, requer esse tipo de prática.
Os pães de fermentação natural, desde que viveram um boom, nunca mais saíram de cena — ainda bem! Afinal, porque sairiam de moda se são deliciosos? Porém, para fazê-lo em casa, é preciso estar muito bem intencionado, já que ele exige bastante dedicação. É preciso estudar (seja através de livros, cursos ou vídeos do YouTube) para entender os conceitos básicos, criar ou descolar um fermento com alguém (já que, aqui, não usamos o fermento instantâneo) e lançar-se na produção, que exige muitas horas de preparos entremeados por fermentações. A minha primeira investida, com a receita básica do Tartine Bread, me custou, na prática, em torno de 10 horas de receita, mais algumas para preparar tudo, comprar os ingredientes, ativar o fermento etc. Valeu a pena? Muito! Mas sei que essa não é a realidade de todo mundo, seja porque não têm o tempo necessário, seja porque querem comer seu próprio pão, mas não se tiverem que passar por tudo isso. E tudo bem.
Pois me aprofundando nas receitas e matérias sobre pães, comecei a buscar por pães sem sova, já que nas últimas semanas acabei não tendo tempo de fazer meu pão de longa fermentação. Eis que encontrei uma receita famosíssima (mas que eu até então não conhecia) e ultra celebrada escrita por Jim Lahey e adaptada por Mark Bittman: A "no knead bread" [o pão sem sova]. No site do NY Times Cooking, a receita possui quase 20 mil avaliações e 3 mil comentários — que loucura! Ela é de 2006 e, apesar da massa não ter sova ou dobras entremeadas por fermentações, e ainda se valer de fermento instantâneo, o pão que resulta continua sendo bonitão, com casca crocante e cheio de buraquinhos. Talvez não seja igual ao que você pode comprar na padaria artesanal, mas ainda é um bom pão e, acima de tudo, o seu pão!
Até a próxima news,
Lena
*“Good bread is the most fundamentally satisfying of all foods; and good bread with fresh butter, the greatest of feasts.”
"O" pão sem sova
(ligue o som!)
O NY Times Cooking tem duas versões dessa receita. A primeira que mencionei acima, e uma mais recente de J. Kenji López-Alt que a revisita e adapta para conseguir resultados ainda melhores. Mas como ela já requer um pouco mais de atenção aos detalhes, acho melhor começarmos pelo… começo.
Se por um lado você não precisará ficar sovando e dobrando sua massa nessa receita, por outro, precisará de planejamento. Isso porque a receita exige tempo — um total de pelo menos 14 horas de descanso/fermentação. O lado bom disso, no entanto, é que você pode se programar para prepará-la no final do dia ou à noite e acordar já podendo assar seu pão para o café da manhã!
Utensílios
O único utensílio que você precisará para executar essa receita é uma panela de ferro com tampa, também conhecida como forno holandês [dutch oven]. Isso porque ela será aquecida previamente com o forno. Assim, ao tampar o pão durante a primeira meia hora de cozimento, o vapor que resulta da cocção fica retido dentro da panela, o que ajuda a formar a casca crocante. Para fazer pães, há um tipo de panela melhor ainda que consiste numa panela com uma tampa rasa que parece uma frigideira. Essa, ao ser invertida, também pode ir ao fogo —- como esta ou esta. Por ser reta e mais rasa que as tampas tradicionais, facilita a introdução do pão na panela hiper quente. Mas claro que a panela de ferro comum funciona bem! Um utensílio que não é obrigatório, mas ajuda muito nos preparos é essa espátula de metal que pode ser usada para manusear a massa, cortá-la, limpar a bancada etc. Também é útil em outros preparos que não os de pão, como recolher ingredientes picados numa tábua para levar a panela. Eu tenho várias e uso com frequência.
Minha pequena adaptação
Mudei um dos passos da receita por achar que dificultava o processo de introduzir a massa crua na panela ultra quente, aumentando as chances de alguém se queimar ou estragar a massa. No terceiro passo da receita, ao invés de deixar o pão fermentar sobre um pano para depois colocá-lo com as mãos na panela quente, preferi deixá-lo fermentando numa tigela forrada com pano e o inverti sobre um papel manteiga. Assim, podemos introduzir o pão na panela segurando as laterais do papel, evitando nos queimar ou mesmo manusear demais a massa, correndo o risco de deixá-la cair de maneira errada na panela. Ao final do processo, o papel pode ser descartado facilmente sem comprometer a cocção do pão.
Eu também reescrevi algumas partes de maneira a detalhar melhor para quem nunca fez o processo antes.
(ligue o som!)
Expectativas e recompensas
Acho que parte importante do processo de quem vai começar do zero é ter humildade e paciência. Começar já fazendo pão de fermentação natural exige dedicação e dificilmente você já terá um nível profissional logo de cara. O importante é que o preparo seja minimamente prazeroso e bem sucedido o suficiente para você querer perseverar até obter um pão realmente bom. Mesmo começando pelo pão sem sova, saiba que ele pode não sair 100% como você queria. Fazer pão é altamente recompensador, mas tem uma equação complexa e sensível que envolve muitos fatores: os ingredientes, os tempos de fermentação, o jeito certo de manusear a massa, a temperatura e umidade da sua cozinha, o quão regulado está o seu forno e por aí vai. A ideia não é desanimar ninguém, apenas balizar as expectativas. Acho que, justamente por isso, o pão é um bom exercício para a vida. Afinal, paciência e humildade não são valores muito em alta na sociedade atual do espetáculo e imediatismo, mas me parece que andam fazendo muita falta.
Quem se interessar pelo preparo e pela versão do Kenji, pode ler este artigo escrito por ele que contextualiza de maneira detalhada todo o processo de criação dessa famosa receita e os porquês deste processo sem sova, bem como o porquê de suas alterações. Achei bem interessante.
Para ler em português | Pão Nosso e Direto ao pão
Para quem prefere ler em português, recomendo dois livros escritos por Luiz Américo Camargo, jornalista, padeiro e proprietário da padaria Na Janela: Pão Nosso e Direto ao pão, ambos da editora Senac. Ali você tem acesso à diversas receitas, aprende como fazer seu próprio levain, além de outras receitas que pedem massas, mas não são pães propriamente ditos, como esfihas.
Pitadas finais
- Celebremos:
é a nova colunista de vinhos do jornal Folha de S. Paulo! Já indiquei sua newsletter, Saca essa Rolha, por sua forma leve e divertida com que trata o tema, além de estar sempre em busca de rótulos bons e acessíveis. Leia a novidade aqui.- Falando em celebração: O chef Jamie Oliver comemorou 25 anos desde que The Naked Chef, seu primeiro programa de TV, foi ao ar. Se não me engano, no Brasil, ele foi transmitido pelo GNT. Quem se lembra? Eu me recordo superbem do cenário e da empolgação que eu sentia vendo aquele cara simpático, hiperativo e divertido cozinhando. Seu impacto foi tamanho que desde então nunca mais parou, somando dezenas de livros, programas de TV, linhas de produtos e restaurantes. No post do seu perfil no Instagram, ele contou que a celebração no escritório envolveu o Rotolo de espinafre e abóbora, a massa que ele preparava no restaurante The River Café (onde trabalhava) quando gravaram um especial de Natal para a televisão e ele foi, então, descoberto.
Apoie!
Se você, leitor ou leitora, gosta do meu trabalho e quer apoiar esta news, te convido a fazer um upgrade na sua assinatura. A produção de conteúdo requer muitas horas de dedicação e recursos financeiros. Afinal, compro diversos ingredientes para testar as muitas receitas aqui compartilhadas, ler livros, conhecer lugares que serão indicados, passo várias horas pesquisando, lendo e escrevendo. E tem ainda o trabalho da Eloah, minha revisora, que garante que o texto final chegue a vocês com o melhor português.
Vantagens
Os leitores colaboradores recebem quatro newsletters por mês, salvo raras exceções por eu ser uma empresa de uma pessoa só. São receitas, guias de viagem e roteiros gastronômicos, textos de que gosto muito ou mesmo textos que eu mesma escrevo com reflexões que considero pertinentes. Na última edição, refleti um pouco sobre a produção de conteúdo gastronômico dentro da lógica perversa do scroll infinito. Só este ano já teve receita de couve-flor assada, queijo feta marinado, hot cross bun, creme de butterscotch (o encontro do creme brûlée com o caramelo!) e três guias de viagem! Ah, e vem um de Paris aí em breve ;)
Enfim, tem muita coisa legal para quem, como eu, gosta de comer e cozinhar e se importa em fazer dos rituais em torno da mesa uma parte importante do seu dia.
CLIQUE AQUI e faça um upgrade na sua assinatura!
Créditos:
Revisão: Eloah Pina
esse pão é perfeito
Lena, fui bem dessa leva que começou a fazer testes com pão de fermentação natural lá em 2014, quando começou a pipocar padarias e padeiros artesanais.
Morava no Ipiranga quando o Shimura abriu a fábrica por lá e, mesmo com a proximidade daqueles pães maravilhosos, existe uma vitória em assar seu próprio, ir evoluíndo nas dobras, no corte. O pão sem sova é um bom lugar pra começar ou, no meu caso, recomeçar com a panificação caseira.
Gostei muito dessa edição :)