PARA NIGELLA
"É provável que você possa passar a vida sem saber assar um frango, mas a questão é, você gostaria de não saber?" ― Nigella Lawson*
Ao longo da minha vida, desde que conheci a Nigella com a chegada da televisão a cabo, tive altos e baixos com ela. Me apaixonei de cara; anos depois, perdi o encanto. Recentemente, voltei a me apaixonar, mas agora não acho que isso vá mudar. Nigella, por sua vez, nunca mudou ao longo desse período. Ela já era uma mulher com seus valores em relação à comida muito bem estabelecidos. Eu é que era uma criança (literalmente) e fui mudando.
Como uma criança que sempre foi fascinada por programas de culinária, aquela mulher linda, com aquele sotaque lindo, cozinhando coisas simples, mas que ela comia com vontade, era muito hipnotizante. Os anos se passaram e eu fui me enveredando para a cozinha, mas aconteceu de eu ir trabalhar, como comunicadora, perto de chefs profissionais na cozinha de restaurantes. Mais que isso, o mundo passava por aquele momento de glorificação dos chefs, da alta gastronomia cheia de técnicas mirabolantes e menus degustação longuíssimos, e eu me desviei do meu caminho. Acho que como todo mundo, achei aquilo tudo meio impressionante, embora tenha tido um lado meu que se sentiu na obrigação de admirar tudo aquilo, como se fosse o “certo”, porque o contrário seria visto como ignorância. Mal sabia eu que, paradoxalmente, era justamente ali que residia a minha ignorância.
Como toda pessoa que vislumbra a ideia de se especializar em um determinado tema e universo, eu não queria passar por mal informada e cafona. Na gastronomia então, ter mal gosto era algo que me parecia literalmente o fim da picada. Então, não era eu que iria gostar daquela mulher que sugeria fritar em imersão nhoque comprado pronto para substituir batatas assadas de maneira rápida!
Mas o tempo passa e a gente envelhece — ainda bem.
Infelizmente, precisei de muitos anos para entender que apesar de admirar muitos chefs de cozinha, meu prazer residia no que havia de mais ordinário e cotidiano, nas coisas comezinhas… no ambiente doméstico. E doméstico é uma palavra difícil de se escrever, porque ela vem carregada de muitos simbolismos — e, muitas vezes, ruins.
Por muitos anos, mulheres que almejavam ser modernas e queriam se livrar daquela vida que obrigatoriamente se limitava às tarefas do lar, precisaram rejeitar a cozinha. Ainda precisavam limpar a casa e cuidar dos filhos e tinham uma jornada laboral de pelo menos oito horas. Mas da cozinha elas conseguiram passar longe, porque a indústria trouxe um monte de opções prontas. Tenho uma conhecida cuja mãe se recusou a ensiná-la a cozinhar, a fim de garantir que ela não fosse obrigada a passar a vida na cozinha. E tinham mesmo muitas mulheres que odiavam cozinhar. Assim como muitas outras não. Essas também se viram obrigadas a se distanciar disso tudo — assim como eu me senti obrigada a não gostar mais da Nigella. Como bem colocou Jane Grigson em seu livro Good Things [Coisas boas], publicado em 1971: “As donas de casa inteligentes sentem que têm o dever de se aborrecer com o ambiente doméstico”
Eu precisei de muitos anos para entender tudo isso, mas a Nigella não. E ela sempre esteve ali, de prontidão, para fazer algo muito simples, gostoso e bem caseiro — tudo isso com uma linguagem divertida e muito acessível. Ela nunca se propôs a executar coisas difíceis e não porque não fosse capaz, mas porque não era o que a motivava. E ela sempre deixou isso claro. Talvez, se antes eu tivesse lido seu primeiro livro, How to Eat: The Pleasures And Principles of Good Food [Como comer: os prazeres e princípios da boa comida, sem tradução para o português], talvez tivesse poupado muito tempo nessa minha jornada de descobrimento.
COMO COMER
Esse livro é um catatau de quinhentas páginas com um total de ZERO fotos. Como a própria Nigella aponta na introdução de uma edição recente, hoje em dia nunca a teriam deixado publicar este livro. Mas o ano era 1998 e a vida não era ditada por fotos e vídeos.
“Não sou uma chef. Não sou nem mesmo uma cozinheira profissional ou treinada. Minha qualificação é enquanto comedora. Eu cozinho o que quero comer […]. Tenho um emprego — outro emprego, isto é, como uma jornalista comum — e dois filhos, um dos quais nasceu enquanto escrevia este livro.”
O título parece bem pretensioso e pode dar a sensação de que ali ela vai listar um monte de regras e obrigatoriedades: mas é o oposto. O livro é uma grande conversa — daquelas bem agradáveis e, acima de tudo, íntimas. Realmente parece que você está na cozinha batendo um papo com ela. As receitas são bem soltas, algumas têm medidas para os ingredientes, outras não. Nem a diagramação tradicional de receitas o livro têm! Tudo segue em formato de texto e precisa ser LIDO. Estou com ele na cabeceira há quase um ano e me dei conta de que estou economizando, pois não quero que acabe. Vou lendo aos poucos, degustando, grifando, desenhando um monte de corações na beirada dos parágrafos preferidos.
A seguir, a introdução do capítulo (para) “Um ou Dois” onde eu marquei um dos últimos coraçõezinhos:
“Woody Allen disse uma vez: ‘Não se deve criticar a masturbação: é sexo com alguém que amo’. A maioria das pessoas não consegue deixar de encontrar algo embaraçosamente onanista no fato de ter prazer em comer sozinho. Mesmo aqueles que afirmam gostar de comida pensam que cozinhar só para si é extravagante e auto-indulgente, ou uma simples perda de tempo e esforço. Mas não é preciso pertencer à escola de pensamento narcisista aprenda-a-amar-se-a-si-mesmo para perceber que pode ser bom considerar que vale a pena cozinhar para si próprio.
[...]
A verdadeira cozinha, para ter alguma autenticidade, alguma integridade, tem de ser parte da nossa maneira de ser, uma função da nossa personalidade, do nosso temperamento. Já existe ventriloquismo culinário demais: cozinhar para si próprio é uma forma de contrariar isso. É a forma de encontrarmos a nossa própria voz. Um dos maiores obstáculos ao prazer de cozinhar é o desejo tenso de impressionar os outros. É praticamente impossível não ter passado por isso. Mesmo que não seja essa a sua motivação, é difícil, se for honesto, ser insensível à reação dos outros. Já que cozinhar para outras pessoas é tentar agradá-las, seria estranho ser indiferente ao seu prazer, e acho que não se deve ser. Mas podemos esforçar-nos demais. Quando se cozinha para si próprio, os riscos não são tão elevados. Não nos importamos tanto. Consequentemente, é muito menos provável que dê errado. E o processo em si é mais agradável.”*
Simples, verdadeiro, bonito e certeiro! E o livro é todo assim. Ela fala para você tirar o preparo do forno “quando julgar pronto” ou ainda recomenda, ao falar sobre vieiras, para guardar parte do preparo para “comer sozinho e com gula”. Sobre o presunto assado, diz que “é difícil ser específico sobre o tamanho que você precisa: depende do quanto você quer que sobre”. Como não amar quem entende e identifica cada nano momento de prazer em todo o longo processo de cozinhar e comer?
Até agora, eu só fiz uma das receitas deste livro (que compartilhei com vocês, o delicioso Queen’s Pudding ou Pudim de Pão da Rainha). Mas para mim, o livro não trata das receitas em si, mas de todo o resto — porque há muito mais que a simples comida no ato de cozinhar.
ACERTANDO AS CONTAS COM A NIGELLA
Eu demorei todos esses anos, e foram mais de vinte, para conseguir resumir a Nigella para mim mesma, para entender onde reside meu encanto por essa mulher que fala de comida de um jeito tão próprio, cativante e sedutor, mas acho que agora eu entendi: a Nigella, desde sempre, foi uma mulher livre. Muito livre.
Ela nunca deixou de cozinhar o que tinha vontade e, mais que vontade, tesão. Ela nunca foi guiada apenas por modismos, nunca se envergonhou de fazer receitas antigas e tidas como caseiras — e até cafonas — e sempre pôs o legado familiar acima de técnicas na sua cozinha.
Ela comia aquilo tudo em frente às câmeras com um prazer escandaloso e escancarado, ciente de seu capital sexual. E até hoje não vejo alguém conseguir fazer isso de maneira genuína em frente às câmeras — há inclusive quem cozinhe e nem prove a própria comida. Muitas vezes prova claramente por obrigação, de maneira teatral — até porque o ato de cozinhar se tornou muito performático. Que corações isso toca?
Nigella é uma das minhas grandes divas culinárias não só viva, mas vivíssima. Porque mesmo sem ter mais seu programa maravilhoso na televisão, mesmo o mundo nos obrigando a nos curvar ao conteúdo e às preocupações de engajamentos e likes, Nigella segue firme e forte com suas receitas pouco elaboradas, com seu modo de vida hedonista e, acima de tudo, sendo ela mesma.
Em breve, eu trarei o meu primeiro vídeo para vocês! Querem saber qual será a receita? Uma bem simples e feita com nhoque comprado pronto. Obrigada, Nigella.
Até a próxima news,
Lena
PARA FAZER | RECEITAS DA NIGELLA COMPARTILHADAS NA NEWS
Bolo Guinness: talvez uma das receitas mais famosas da Nigella. É delicioso!
Queen’s pudding ou pudim de pão da rainha: uma baita receita para aproveitar um pão dormido e variar nossa receita tipicamente brasileira.
PARA REVER | NIGELLA BITES
Em 1999, ano seguinte à publicação de How to Eat — que se tornou um bestseller com 300 mil cópias vendidas — ela lançou o programa Nigella Bites no Channel 4. Para mim, esse segue sendo um dos melhores programas culinários já produzidos.
“A escritora de culinária britânica e personalidade da TV, Nigella Lawson, nos leva para a sua cozinha com Nigella Bites. Compartilhando receitas diretas e realmente apetitosas, Nigella oferece seus pratos favoritos para entreter convidados, comer sozinha, saciar desejos ‘lixo’ ou confortar a alma.”
É possível rever diversos episódios no YouTube, como este da primeira temporada “The Art Of Stress Free Home Cooking” [A arte da cozinha caseira sem estresse].
PARA LER | NIGELLA NUNCA FOI APENAS UMA DEUSA DOMÉSTICA
Em 2018, na ocasião dos vinte anos do livro How to Eat, o New York Times publicou um artigo que refletia sobre a carreira de Nigella. Dentre um dos feitos destacados no artigo, foi a maior evidência para o valor da cozinha caseira:
“How to Eat” marcou também por se distanciar dos livros de cozinha técnicos, escritos por chefes, e foi em direção a uma filosofia de cozinha que consistia em agradar a si próprio, em vez de exercitar os músculos culinários para impressionar os outros. “Nunca se preocupe com o que os seus convidados vão pensar de si”, escreveu Lawson. “Pense apenas na comida. O que é que vai ser gostoso?”
Corajosa, Nigella, ajudou muita gente a se libertar da necessidade de impressionar:
“Bee Wilson, escritora britânica de gastronomia e amiga de Lawson, descreveu “How to Eat” como revolucionário. “Foi o primeiro livro a defender de forma tão persuasiva que a cozinha caseira não precisava de pedir desculpa por não ser de restaurante”. “De repente, tinha alguém falando que uma tigela reconfortante de ensopado poderia ser melhor do que um preparo feito para impressionar.”
Leia na íntegra aqui. [em inglês]
Créditos:
Edição: Eloah Pina
Traduções: via DeepL
Lena, assim como vc, deu vontade de ler mais devagar seu texto, só para economizar e nâo acabar tão rápido. Que delicia de texto.
Também sou fã de Nigella e dos momentos em que ela assaltava a geladeira no final dos videos. Aquilo sim era vida real!!! Kkk
Gosto da Nigella, mas depois que virei mãe, virei mais fã. Quer dizer, dois filhos, o marido morreu quando eles ainda eram pequenos... Trabalha, cozinha, congela tudo -- algo que só fui entender depois da maternidade. E o lance de incorporar comidas prontas nas receitas? Só fez sentido para mim depois de me mudar para a Inglaterra -- e descobrir a variedade disponível -- e, de novo, cuidar de uma criança pequena. E ainda se graduou em Oxford! Quer dizer... 👏