UM PAIN PERDU PARA UM COMEÇO DE ANO BEM INTENCIONADO
"Vou seguindo/ Amor vou levando/ Amor entregando/ Amor vou pedindo" — Evinha
Sejam bem-vindos à primeira edição de 2024 e ao quinto ano desta publicação! Não sou de fazer promessas, mas difícil não ser tomada pelas boas intenções para uma vida melhor e mais gentil que inundam o começo do ano. Foi durante uma sessão de shiatsu, desatando os nós das costas, que comecei a pensar nos nós da vida que queria desatar este ano. E há sempre mais nós do que somos capazes de desatar. Acho que o lance é escolher nossas batalhas, entendendo quais pedem urgência, bem como quais fios nós somos realmente capazes de desembaraçar.
Dentre os meus, está a vontade de reduzir ainda mais o consumo de carne do que já venho tentando nos últimos tempos. Um dia espero conseguir parar totalmente. Afinal, a mudança climática já bateu na porta (assim como o resultado do exame de colesterol alto) e é um assunto que pede urgência. Mas acredito que parar por completo, agora, seria pedir para desistir em breve. Assim, nos comprometemos, eu e meu marido, a não comer carne de segunda à sexta-feira (com exceções abertas às receitas da minha aula de cozinha e alguns testes do livro).
Outra grande vontade é passar menos tempo no celular e, sobretudo, nas redes sociais. O dia parece evaporar quando passamos muitas horas rolando a tela sem objetivo algum, e o tempo é valioso demais para isso. Muito valiosa é também minha capacidade de concentração, que fica totalmente abalada, para não dizer dizimada com o uso excessivo de redes. Como dizem por aí, sinto falta do meu cérebro pré-internet. Falando nisso, há um trecho de uma entrevista do Museu de Arte Moderna Louisiana, na Dinamarca, com a fotógrafa americana Nan Goldin, que aborda esse tema.
E, tirando minhas metas pessoais, como acabar um livro, concluir meu curso de cozinha e o novo curso de confeitaria que comecei semana passada, quero, ainda, ser mais gentil comigo mesma. Me inspiro nas palavras da escritora Virginia Woolf que, em 1931, escreveu sobre suas resoluções na virada do ano resumidas aqui:
"Ser livre e gentil comigo mesma [...] Às vezes ler, às vezes não ler. Sair, sim — mas ficar em casa apesar de ser convidada. Quanto às roupas, comprar boas".
Para essa primeira edição, sob os efeitos das boas intenções mencionadas acima, selecionei uma receita cujo nome nos inspira o pensamento positivo, já que transforma o que está aparentemente velho e perdido em algo novo e fabuloso: o pain perdu, ou pão perdido, em francês. Ele nada mais é do que a rabanada francesa e foi a primeira coisa que cozinhei este ano, já no dia 1º de janeiro depois de muitos dias de férias sem encostar no fogão.
E, independente de nossas vontades e promessas, sigamos levando, entregando e pedindo amor, como bem cantou Evinha.
Um bom começo de ano para todos nós e até a próxima edição,
Lena
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Pain perdu com creme inglês
Transformar o velho em novo, o duro em macio, o que está, aparentemente, perdido em algo delicioso e incrível. Esse é o pain perdu ou, como disse acima, a rabanada francesa. Tá certo que o nome não faz jus ao que de fato a receita é, já que o pão não foi perdido, mas sim, recuperado. Enfim, uma boa receita para começarmos o ano de maneira positiva e bem intencionada na cozinha, não é mesmo?
Minha vontade de fazer esta receita veio do pain perdu que comi no Ici Bistrô durante as férias, em São Paulo. Benny Novak oferece essa sobremesa no restaurante há décadas e é realmente imperdível! Como o único jeito de continuar comendo aqui em Barcelona era fazendo eu mesma… resolvi experimentar. Ficou ótimo!
Qual a diferença entre a versão da rabanada francesa e a brasileira? Algumas:
O pão, idealmente, é o brioche;
Não tem leite condensado na receita ;
Ele é frito em manteiga;
Ele é servido com crème anglaise [creme inglês].
De resto, o processo em si é parecido: usamos um pão já envelhecido e mais seco, depois ele é umedecido numa mistura de leite com ovos e, então, frito. Ao final, é empanado no açúcar. Salivei só de escrever.
O creme inglês é um molho muito versátil que pode acompanhar frutas assadas, tortas, suflês e outras sobremesas. Aqui em Barcelona, o meu creme ficou bem clarinho porque as gemas dos ovos orgânicos que compro não tem uma cor intensa como as que eu usava no Brasil. Mas ficou igualmente saboroso!
Para assistir | Recapitulando
Como essa news existe há muitos anos e nem todos vocês estavam aqui desde o princípio, selecionei dois conteúdos inspiradores que reassisti neste começo de ano, pois acho que era exatamente o que o momento pedia. É também uma chance para quem já assinava e não viu, ver.
The Best Chef in the World [A melhor chef do mundo]:
Esse mini documentário conta a linda trajetória de Sally Schmitt, uma das primeiras cozinheiras profissionais da Califórnia e uma das pioneiras na cozinha local que não ganhou a fama global de pares como Alice Waters. Fundadora do The French Laundry, restaurante que posteriormente foi comprado pelo chef Thomas Keller totalmente dedicado à cozinha californiana e sazonal, Schmitt criou um ambiente familiar com a ajuda do marido e de seus cinco filhos.
Como bem pontua o diretor Ben Proudfoot, Sally não fala apenas de cozinhar, mas de outras maneiras de enxergar o sucesso e das armadilhas da ambição. Ela trata do prazer e das recompensas de uma vida simples, equilibrada e familiar. Afinal, nem todo cozinheiro quer ser o melhor cozinheiro do mundo — e isso é ótimo. "Se eu fosse fazer um restaurante três estrelas, eu acho que provavelmente conseguiria, caso eu realmente quisesse. Mas isso iria desequilibrar a minha vida. E eu valorizava demais o meu estilo de vida para cair nesta armadilha".
O documentário nos comove por meio da simplicidade e da lucidez de Sally, uma figura inspiradora que manteve os pés firmes no chão apesar de todo o seu sucesso. Ela sempre soube o que realmente queria: "apenas" alimentar as pessoas com uma boa comida.
Infelizmente, o filme só está disponível em inglês e ainda não apresenta legendas em português.
Assista aqui.
Dashi Journey [A jornada do dashi]:
Conhecer o Japão foi uma das coisas mais incríveis que eu tive o privilégio de fazer. Desde então, tudo que diz respeito à cultura japonesa é objeto de interesse aqui em casa – sobretudo a culinária. Este mini documentário foi feito por Eric Wolfinger, e, ao longo de dezessete minutos, ele mostra a trajetória de um chef japonês em busca das origens do dashi – caldo que ele define como "base onipresente, porém invisível, da culinária japonesa". Ele pesquisa seus dois elementos-base além da água: kombu (alga seca) e katsuobushi (raspas de peixe Bonito curado). Não bastasse o conteúdo ser lindo e altamente interessante, tem Milton Nascimento na trilha sonora! Infelizmente, só está disponível com legendas em inglês.
Assista aqui.
Para conhecer e se deliciar | Lida
Abriu em São Paulo a Lida, a melhor das padarias. Lá, os pães impecáveis de Hanny Guimarães são acompanhados pelos sorvetes deliciosamente inusitados de Carolina Arantes. Ambas são amigas minhas e digo com propriedade que esse encontro profissional não poderia ser mais feliz. Dedicadas, para não dizer obcecadas, elas montaram um negócio que de pequeno tem só o tamanho.
Os pães são 100% integrais, incluindo os folhados, e são feitos com farinha moída na casa. A oferta da Lida é variada: sourdough, baguete, focaccia, croissant, kouign-amann, canelé, biscoitos e o que a mais a criatividade da padeira permitir. Para quem não a conhece, Hanny foi responsável por montar a padaria do Futuro Refeitório, de onde saiu para trabalhar no Blue Hill at Stone Bar, em Nova York.
Já Carolina deixou a assessoria de restaurantes renomados, como o Maní, para se dedicar aos sorvetes. Não espere nenhum sabor manjado. Na Lida você poderá escolher entre sorvete de halawi (doce árabe de gergelim), folha de makrut (planta originária do sudoeste asiático e usado em muitos pratos locais), doce de leite com cointreau e laranja confitada, pão na chapa (isso mesmo!), tortilha e figo com folha de figo, entre muitas outras boas surpresas.
Tudo é vendido para ser consumido em casa. E quem quiser, ainda pode levar vinhos naturais, cachaça e queijos selecionados por elas. Vá e seja muito feliz!
Endereço: Rua João Moura, 911 — Pinheiros.
Horário de funcionamento: quarta à sexta, das 11h às 19h.
Para repensar | Ano passado eu não emagreci. E aí?
Se tem uma coisa da qual o começo do ano está cheio é gente dizendo que vai emagrecer, fazer dieta e o escambau. Quem nunca? Pois o texto "Ano passado não emagreci. E aí?", escrito pela Vanessa Guedes em sua newsletter
, é uma baita reflexão necessária para todos nós, sobretudo todas nós que passamos a vida achando que poderíamos ser um pouco mais magras ou que, caso fôssemos mais magras, as coisas seriam diferentes — quer dizer, melhores.Pensando sobre as resoluções de ano novo, Vanessa refletiu sobre a coisa mais radical que poderia desejar para si e decidiu que em 2023 não tentaria emagrecer. E o que parece simples se desenrolou em uma série de outras reflexões sobre insegurança de tudo quanto é tipo. São algumas dessas reflexões, importantíssimas, apesar de doídas, que ela compartilha no texto:
Se antigamente eu ouvi muito a frase “você tem um rosto lindo, imagina se fosse magra”, hoje eu escuto variações do já citado “você passa a impressão de ser uma mulher segura”. As duas estão impregnadas da mesma ideia. De que tentar ser magra é o esperado de nós. Hoje em dia, quando não demonstramos estar buscando esse ideal, somos automaticamente pessoas seguras. Quase assustadoras. Ousadas. Desviar da norma virou uma narrativa de coragem e eu entendo essa necessidade, mas não quer dizer que todo mundo está vivendo nessa chave. Às vezes a gente está apenas vivendo. Não estamos protagonizando um comercial da Dove.
Ler esse texto foi muito bom para mim, que busco ser mais gentil comigo mesma neste novo ano. Acho que antes de prometermos ser mais magras e dizer que faremos dietas X, Y ou Z, deveríamos nos comprometer a repensar nossa relação com o corpo e, consequentemente, com a comida. Que em 2023 a comida possa ocupar um lugar com menos culpa e mais prazer; que a busca seja por mais saúde e menos por padrões estéticos inalcançáveis.
Pitadas finais:
Não só a série The Bear [O urso] levou o Globo de Ouro e estatuetas do Critics Choice Awards e Emmy de melhor série de televisão — na categoria comédia — como os atores Jeremy Allen White e Ayo Debiri ganharam a estatueta de melhores atores em uma série de televisão do mesmo grupo. Seguimos aguardando ansiosamente a terceira temporada. O pessoal da Crudo recapitulou as duas primeiras temporadas aqui.
Listei cinco lojas incríveis de culinária pelo mundo no site da revista Viagens. Leia aqui.
Indiquei para a matéria de presentes de natal para comer da revista Elle, o bolo de earl grey e blueberry. Mas, na verdade, acho que você pode presentear alguém com este bolo o ano todo! Leia a matéria da Flávia G. Pinho aqui.
Créditos:
Revisão: Eloah Pina
Lendo sua news eu pensei, aqui na Espanha não tem rabanada, mas tem torrijas. Lembro que estive em Sevilha no começo de 2023 e comi uma torrijas incrível com creme inglês com laranja 🍊...
Uma coisa bacana de viver fora e provar receitas antigas com um toque diferente
:)
Amos as news, minha companhia no trem quando vou a caminho da UAB
Lena, sua newsletter é sempre uma grata surpresa! Adoro! Feliz ano para nós, para o planeta! <3