Scroll infinito e a produção frenética de receitas lacradoras
Na busca pela próxima receita lacradora, produtores de conteúdo criam coisas estranhas, copiam sem dar créditos e alimentam a lógica perversa do scroll infinito

Começo avisando que não acordei bem-humorada. Quer dizer, talvez eu até estivesse de bom humor, mas logo abri meu celular, dei uns scrolls nas redes sociais e me irritei. Peguei minha caneca de café e sentei para escrever. Ou seja, esta news foi produzida à base de irritação e cafeína — lo siento. Mentira, não lo siento nada.
Reconheço muitas coisas bacanas que as redes sociais nos proporcionam quando usadas de maneira virtuosa: troca, acesso, conhecimento, criação de comunidades, amizades, reivindicações políticas e até o surgimento de novas profissões remuneradas no campo da criatividade. Porém, nem todos usam as redes de maneira virtuosa ou, quando usam, não o tempo todo. Não vou entrar na discussão de fake news, cancelamentos brutais e a falta de legislação para um monte de coisas erradas que rolam na internet — que, de fato, estão ali no topo da lista de coisas ruins. Vou me ater ao meu universo de produção de conteúdo gastronômico que, apesar de singelo perto desses outros tipos de problemas, ainda afeta o dia a dia de muita gente, já que o que está por trás disso é uma engenhoca com uma lógica perversa — que não se limita a esse campo da comida, atingindo muitos outros setores também.
Vocês sabiam que o cara que inventou o scroll infinito, baseado na mesma lógica das máquinas de caça níquel, admitiu ter se arrependido dessa criação? Isso é para a gente entender a gravidade desse "pequeno" detalhe que viciou boa parte da humanidade neste movimento constante, sempre a espera de um conteúdo melhor, mais bonito, mais interessante, mais inspirador e que possa, sabe-se lá como, deixar nosso dia muito melhor. Os vídeos, formato que é a menina dos olhos do algoritmo, estão ficando mais frenéticos, e a nossa mente cada vez mais dispersa e saturada. Com isso, os dedinhos seguem incessantes tentando achar algo interessante. Mais do que nunca, a boa e velha analogia do ratinho na roda segue valendo.
Esse comportamento on-line mudou a forma como criamos conteúdo e, no caso da minha área, receitas. Hoje, parece que mais vale algo "autoral" — que muitas vezes consiste apenas num (bom) rebrand — do que algo necessariamente novo e/ou gostoso, como as watermelon fries — ou a melancia cortada em palitos, empratada e servida com iogurte (dê um Google). E quem foi que inventou o powdery ice [gelo em pó], uma raspadinha em textura mais fina? São muitos os vídeos de gente ensinando a bater gelo no liquidificador. Tem alguns que consistem apenas numa pessoa sentada comendo gelo em pó puro. Será que fui eu que não entendi e preciso de explicação? Me ajudem!
Tem também as receitas que tentam fazer releituras de clássicos com um toque "pessoal", como a de cacio e pepe que leva 1 litro de vinho tinto rebatizada de "cacio e pepe bêbado". Por um tempo (curto, como sempre) essa massa foi aclamada na bolha gastronômica da internet. Pode isso, Arnaldo? Poder pode, mas…
Há quem mude apenas um ingrediente para chamar o preparo de seu sem e há quem copie tudo de cabo a rabo sem nem dar os créditos. Autoria de receita é uma coisa complicada, afinal, o que faz uma receita ser de alguém? Não existe propriedade sobre receitas, mas o bom senso diz para mencionarmos a fonte, sobretudo, se copiarmos a receita tal e qual. Só que o universo da produção de conteúdo incessante parece ter virado terra de ninguém. Uma receita é reproduzida milhares de vezes até que a versão original se perca nos cafundós da internet, sendo difícil de ser encontrada até pelos bem intencionados que querem reproduzi-la citando as fontes originais. Quem se lembra do queijo feta assado com tomatinhos e então misturados a uma massa? Outro dia o pessoal da Cru.do até postou um pequeno guia de como se inspirar no conteúdo alheio de maneira ética e com estilo (até porque elas mesmas, enquanto agência de comunicação gastronômica, foram plagiadas).
É claro que, no meio disso tudo, tem conteúdo muito bom, bem feito, bem intencionado que rende receitas gostosas — autorais ou não. Afinal, as coisas não precisam ser autorais e únicas para ser boas ou interessantes, e eu também não estou aqui para apontar dedos para fulano ou beltrano. Estou apenas refletindo sobre o modelo de produção de conteúdo vigente, bem como o consumo do mesmo e, consequentemente, sobre o meu próprio trabalho.
Criar receitas é um trabalho árduo. Salvo raras exceções, exige dos profissionais uma série de experiências como repertório gustativo e de receitas, conhecimento de culturas culinárias diversas e, mesmo que minimamente, algumas técnicas. É necessário saber como usar determinados ingredientes, como compor e combinar sabores, ou ter, no mínimo, boa intuição para tudo isso. Sem falar que quem vive disso precisa estar o tempo todo se munindo de inspirações para fazer novas criações que não sejam algo chupinhado de alguém ou algo que seja a novidade pela novidade. Afinal, na boa criação de receitas, quem manda é o sabor!
Esse assunto dá pano pra manga, né? Gostei muito do que li num texto da jornalista norte-americana Maggie Hennessy, chamado "The insatiability of recipe writing" [A insaciabilidade de escrever receitas]: “A verdade é que escrever receitas em nossa era globalizada e on-line é uma coisa insaciável. É sempre promíscuo em relação à próxima moda e para o novo. Exige simplicidade e fator surpreendente, entregue em apenas 30 minutos. Exige inteligência com os ingredientes da despensa do dia a dia. Exige ser sem carne, mas não diet. Exige substituições que funcionem perfeitamente. Exige 17 novas maneiras de fazer o mesmo velho jantar de Ação de Graças. Exige sobras criativas e massas que não sejam massas. Exige comida frita que não seja frita."
A audiência pede e espera muito. Até aí tudo bem, porque a ideia é entregar qualidade. O problema é que ela quer novidades e qualidade o tempo todo. É um mercado realmente insaciável e muito por conta daquela engenhoca perversa do scroll infinito! Uma receita que levou um tempão para ser criada, testada e filmada/fotografada é consumida em segundos ou, no máximo, um minuto e então… próximooo! Como disse Priya Krishna nesta matéria interessante do NY Times intitulada How cooking videos took over the world [Como os vídeos de culinária dominaram o mundo]: "O que mais importa não é criar uma receita deliciosa e infalível, mas chamar a atenção de alguém imediatamente."
Produzimos mais e não necessariamente melhor e, sobretudo, produzimos mais do que conseguimos consumir. Todos seguem tentando ganhar na loteria da viralização e abocanhar um pedacinho desse monte de dinheiro que tem ido parar no bolso de influenciadores. Mas será que essas receitas lacradoras são gostosas ou será que são apenas bom entretenimento de se ver nas redes sociais? Ou estaríamos nós apenas viciados em passar para o próximo conteúdo sem ao menos aproveitar o que acabamos de ver? E o que nós, consumidores de conteúdo, esperamos dos criadores e de suas receitas? O que estamos alimentando com nossos likes e compartilhamentos?
Eu vou dormir com essas perguntas e convido você a fazer o mesmo. E não deixe de compartilhar o que você acha ali nos comentários. Eu adoraria saber :)
Até a próxima news,
Lena
Créditos:
Revisão: Eloah Pina
Perfeita demais! Quem reproduz a quantidade de receitas que são produzidas em vídeo? Tenho a impressão que a pessoa nem entende o que está fazendo. Nem se questiona porquê usa tal produto ou tal procedimento naquela hora. Os vídeos são lindos e bem produzidos, mas me questiono até que ponto precisamos dessa quantidade absurda de produção.
Excelente texto! Internet é terra de ninguém, ideias, textos, imagens e, pelo visto, receitas são "roubadas" sem constrangimento... e na guerra pelo engajamento, topa-se tudo! Sinto muito pelo que lhe tenha acontecido. Não existe uma forma de registrar a receita? Claro que daria muito trabalho fiscalizar sua reprodução, mas estaria lá a sua assinatura