De quando eu trabalhei em restaurante com escala 6x1
"Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida” — Antonio Candido
A vida em um restaurante é tão intensa que, para mim, é como a idade dos cachorros: cada ano equivale a sete. Durante dois anos (ou seriam catorze?), eu trabalhei como sommelière em um restaurante, na escala 6x1. Durante seis dias eu trabalhava tanto no serviço do almoço como no do jantar. Não havia revezamento de turno. Aos sábados, entrávamos no final da manhã e íamos até o fim do jantar (numa jornada que podia durar entre doze e quinze horas) com apenas uma hora de descanso. Nós da equipe ganhávamos a devida caixinha e o valor pelas horas extras (não é o que vemos por aí sempre), além de sermos muitíssimo bem tratados e existir um ótimo senso de camaradagem entre nós. Apesar da escala, quando olhávamos para o mercado em geral, essas condições básicas faziam daquele um dos lugares bons para se trabalhar — sobretudo para mim que fazia aquilo por opção.
Para quem não acompanhou a discussão das últimas semanas, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que propõe o fim da escala 6x1, em que trabalhadores têm apenas um dia de folga remunerado — atingiu o número de assinaturas necessárias para tramitação no Congresso Nacional. Um feito e tanto para a deputada Erika Hilton (PSOL-SP). Os restaurantes são só um dos vários mercados que tem essa praxe empregatícia e sobre a qual eu posso falar com algum conhecimento de causa.
Dois anos não são nada perto de quem passa a vida fazendo isso — por escolha ou, na maioria das vezes, por necessidade. Ainda assim, foi tempo suficiente para fazer com que eu quase não tivesse mais relações sociais fora do trabalho. Que dirá tempo para outras atividades. Em um determinado momento, muita gente já nem me convidava mais para mais nada porque eu nunca podia ir. E quando eu podia, estava exausta ou chegava no fim da festa — literalmente. Viajar? Quase nunca, salvo os raros feriados em que fechávamos ou nas férias coletivas. Também foi tempo suficiente para deixar muitas (muitas mesmo) veias estouradas nos meus tornozelos e nas minhas coxas. A dor nas costas e na sola dos pés eram constantes. Às vezes eu chegava exausta, mas tão enérgica por causa da adrenalina, que eu não conseguia dormir. Era tentador apelar para uma dose de algo forte. Por sorte (e muitos privilégios), eu nunca tive problemas com álcool como muita gente do ramo tem.
Pessoas que trabalham em salão lidam com clientes e, no Brasil, existe uma camada extra de estresse nesse trabalho, uma vez que o funcionário ainda é tratado como um serviçal. Há muitos clientes que proferem grosserias, que fazem ameaças e xingam. Eu vi com meus próprios olhos um cliente rasgar o cardápio na minha cara porque não tínhamos o vinho que ele queria, outro chutar a porta da cozinha e entrar esbravejando contra os que ali trabalhavam porque a espera estava muito longa e, claro, gente pseudo-famosa nos ameaçar com a célebre e patética “você sabe com quem você está falando?”. O que não faltava era gente achando que merecia café e outras coisas de graça, como o garoto que ficou furioso porque cobramos a dose de licor que ele, por livre e espontânea vontade, solicitou e consumiu.
Também posso falar do nível de invisibilidade dos prestadores de serviço em um restaurante. Naquele em que eu trabalhava não havia serviço de manobrista e o que não faltava era gente que descia do carro sem nem olhar em volta e entrava no restaurante. Então tínhamos que ir avisar que ele havia largado o carro aberto no meio da rua. Ou seja, mesmo que houvesse um valet, olhar na cara do manobrista não era uma prática de alguns consumidores. Também posso contar da vez que atendi a irmã de uma amiga e ela passou o jantar inteiro interagindo comigo sem nem olhar na minha cara e, ao final, tomou um susto quando se deu conta de que era eu.
Posso falar ainda de todo o preconceito que existe contra aqueles que prestam serviços como esse. Quando eu atendia conhecidos, alguns ficavam incomodadíssimos porque eu os estava atendendo, a ponto de um deles verbalizar “Helena, é muito ruim você ficar me servindo”. Eu estava apenas fazendo o meu digníssimo trabalho. A cara de espanto estampada nos clientes quando eles descobriam que eu havia estudado na mesma escola que eles ou que os filhos estudavam, que éramos sócios do mesmo clube… era constrangedor. Mais constrangedor (e revoltante) era quando um cliente tratava todos muito mal e, ao descobrir que eu havia me formado como sommelière no exterior, passava a me tratar bem. Os demais? Ele seguia tratando mal.
As mulheres merecem um capítulo especial nessa história, dado o nível de abusos e assédio que sofrem — as do salão e as da cozinha. Esses dias uma profissional me contou que um chef a trancou na câmara fria, mas vou focar na minha própria experiência já que nunca trabalhei como cozinheira. Havia os caras que pediam o meu telefone sem o menor constrangimento, sem nem me conhecer, ou que ficavam fazendo comentários sobre a minha aparência — o que eles achavam da cor do meu esmalte ou do meu novo corte de cabelo ou ainda do tamanho das olheiras que eu havia escolhido não esconder com maquiagem naquele dia. Esses eram os casos leves. Havia os semiconhecidos que mesmo sabendo que eu namorava, não se importavam. Me achavam nas redes sociais e se sentiam à vontade para me mandar mensagem. Teve um que reservou uma mesa e se divertiu me chamando o tempo todo por saber que eu “tinha que” ir. Uma vez, dado o nível de importunação de um cliente, minha gerente pediu para eu passar um tempo no escritório bem no meio do serviço. O senhor saiu pelo restaurante me procurando, olhando atrás do balcão do bar e no banheiro! E chegou ao ponto de um senhor que frequentava o restaurante com sua mulher inventar para ela, após o divórcio, que estava saindo comigo. Eu namorava e nós tínhamos conhecidos em comum. Dali em diante, minha gerente me deu permissão para ignorar a mesa daquele cliente para todo o sempre, mesmo que ele me chamasse. A forma como os consumidores eram tratados no restaurante onde eu trabalhava era realmente algo fora da curva. Na maioria dos lugares as mulheres teriam que seguir servindo, e sendo servis, com este senhor. Apesar de que lá o cliente nem sempre tinha razão e haver um cuidado de não deixá-lo agir como bem quisesse e nem de sair dali impune, isso não era suficiente para minar esse tipo de comportamento e eliminar o estresse da posição. Era assim seis dias por semana.
Esses são só alguns dos exemplos do que passa uma pessoa que trabalha no salão de um restaurante. Não bastasse o trabalho ser fisicamente demandante e desgastante, essas outras camadas de abuso e importunação só degradam ainda mais o bem-estar mental. Um dia da semana não é e nem nunca será suficiente para se recompor. E mais do que isso, o tempo fora do trabalho não é um tempo para apenas nos recompormos para podermos recomeçar. Isso ainda seria agir em função do trabalho. Precisamos de tempo para viver nossas vidas, como bem colocou o professor Antonio Candido:
“Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a dez minutos eu estou mais velho, daqui a vinte minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’ […].”
Nós deveríamos nos espantar com a fala do presidente da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) de achar “estapafúrdia” a ideia de reduzir a escala de trabalho. Em teoria, o presidente dessa associação deveria zelar pelos trabalhadores do setor, por uma questão de direitos humanos (que me parece óbvia) e também porque eles são essenciais para o bom funcionamento e desenvolvimento do setor que ele preside. Ou seja, impor condições de trabalho excessivas só afasta os trabalhadores que, se tiverem oportunidade, farão outra coisa. Basta conversar com as pessoas da área que você ouvirá sempre a mesma reclamação: a mão de obra está escassa e muito difícil, ninguém se compromete, começam a trabalhar e simplesmente somem, e por aí vai. Pois num ramo em que se trabalha tanto, se sacrifica quase tudo e se ganha pouco… não é de se espantar.
Eu nunca fui dona de um negócio neste ramo (quem sabe um dia), mas sei que é uma equação financeira complexa e muito frágil. Mas sejam quais forem as dificuldades, o setor não pode existir às custas do bem-estar de seus funcionários. Há de haver um debate em que todas as frentes e seus respectivos interesses sejam inclusos. Como bem disse Juliana de Farias em um texto para a Fast Company Brasil:
“Há espaço para melhorias e ajustes, como a própria Erika Hilton apontou em suas redes sociais. O que não pode acontecer é encerrar essa conversa antes mesmo de começá-la.
Principalmente quando uma oportunidade de debate sobre algo tão impactante na vida dos trabalhadores é recebida com pânico. Cenários de desastres econômicos são criados no alarmismo.
Vale lembrar que, no passado, latifundiários se opuseram à abolição da escravidão por temerem perder seu poder. Da mesma forma, previsões catastróficas foram feitas quando o 13º salário, em 1962, foi instituído.”
E alarmismo é a palavra para a reação do presidente da Abrasel que se opõe à proposta com a justificativa de que “todo mundo quer bar e restaurante disponível a semana inteira, e querem a custo baixo. Aí você vê as pessoas querendo inviabilizar para o consumidor. E já estamos com dificuldades enormes com trabalhadores”. Está mais do que na hora de entender que as “dificuldades enormes com trabalhadores” é só uma das consequências da jornada 6x1.
Eu tenho ótimas memórias do período em que trabalhei como sommelière e morro de saudades dos bons momentos. Mas tenho plena consciência que parte daquele prazer vinha do fato de ver a cara de satisfação de um comensal satisfeito com o vinho e com toda a experiência de hospitalidade que oferecíamos, mas que outra parte vinha do privilégio de estar ali por opção e saber que bastaria eu querer para sair dali.
Eu não sei como nós vamos desatar este nó, mas precisamos tentar. E para tentar é preciso, antes de mais nada, querer. Que possamos (todos!) cultivar nossos universos de sonhos e realizações próprias, que possamos exercer nossa humanidade entendendo que, enquanto sociedade que busca evoluir, precisamos buscar uma economia em que a gente trabalhe menos, e não mais.
Leia também:
“Fim da escala 6x”, da newsletter Jornal do veneno escrita pela
.Posts de Max Jacques “Gastronomia e as relações de trabalho: o silêncio do regime 6x1” e “Se um setor está baseado na superexploração, ele precisa mudar”
Texto #163 da newsletter Sou meio vagabunda, mas sou boa gente escrita pela
.
Nossa, Lena, que texto ótimo (e duro de ler). Cada vez que você faz questão de dizer que "isso porque esse restaurante era diferente, era especial" meu coração ficou mais apertado de pensar em todas as pessoas que estão e estiverem em outros restaurantes. Essa camada de enxergar a pessoa que trabalha com serviço como serviçal é uma grande tristeza. Obrigada por compartilhar sua experiência.
Trabalhei em outro ramo (farmacia) mas a experiencia é identica: falta de vida social, dores no corpo, varizes, clientes grosseiros e/ou assediadores, que não raro levavam alguma colega as lágrimas. Eu ainda ganhava bem (era gerente), mas a maioria tem salario de fome. Daí ninguém sabe porque a rotatividade é tão grande...