100 EDIÇÕES DE RECEITAS E BRUXARIAS
Para mim, a cozinha é esse lugar virtuoso, cujo poder reside no fato da intenção ser tão importante quanto os ingredientes e a receita.
Esta é a centésima edição da newsletter — que alegria! Não poderia deixar de celebrar essa comunidade de quase 20 mil pessoas interessadas em cozinhar e comer; gente que busca fazer dos rituais em torno da mesa uma parte importante de suas vidas.
Quando paro para pensar no ato de cozinhar e tento entender por que raios isso sempre exerceu uma força atrativa sobre mim, como um imã que não deixa eu me afastar, me dou conta de que o prazer reside mais no cozinhar do que no comer. Não me entendam mal, eu adoro comer e sou dessas que fica insuportavelmente mal-humorada com fome. Tenho desejos malucos e repentinos. Minhas viagens giram em torno de visitas a restaurantes, cafés e padarias. Meu programa favorito é reunir gente querida para compartilhar boa comida. Comer é realmente uma coisa que alimenta a alma e eleva o espírito. Mas isso é onde culmina todo o trabalho do cozinhar que, por sua vez, começa antes mesmo de entrarmos na cozinha.
Existe um prazer antecipatório em pensar o que e para quem vamos cozinhar. Elaborar um menu com receitas cuidadosamente selecionadas que atendem desejos e evocam memórias. Ou então se deixar levar pela intuição para criar algo novo. Desprender energia em meio aos dias corridos para ir ao mercado em cidades caóticas é um ato de bravura e resistência. Escolher os ingredientes, tocar, cheirar, apertar. E então enfrentar as tarefas menos glamourosas de voltar para casa, descarregar as compras e guardar tudo no seu devido lugar — quem é que gosta de lavar e secar alface, minha deusa do céu?! Mas uma vez feito tudo isso, o baile segue. A gente descasca, pica, mede, esquenta, refoga, mistura, tempera, mexe, prova e ajusta. Fazemos um esforço extra para casar os tempos dos diferentes preparos ou, em dias mais corridos, optamos por receitas que podem ser servidas frias ou em temperatura ambiente. Colocamos a mesa e, os mais dedicados ainda escolhem uma bebida e uma música. Só então é que chega o momento de comer.
Pense comigo: são tantas horas dedicadas ao preparo, seja de um dia especial, sejam dos dias da semana, que passamos mais tempo cozinhando do que comendo. Se o processo de cozinhar for um grande pesar, não há comida boa o suficiente que faça valer a pena. E se, como disse M. F. K. Fisher, “precisamos comer para viver, é melhor fazê-lo com graça e gosto”.
Se fizermos o processo de maneira consciente e entendermos que apesar de uma longa jornada que começa antes mesmo de pôr a mão na massa, também podemos entender que o que ganhamos é muito maior que um bom prato de comida. Ganhamos, de cara, repertório e conhecimento alimentar e culinário (o que é essencial para a cultura). Mas podemos ir além: agregamos pessoas amadas, forjamos laços, proporcionamos momentos felizes e, com isso, memórias. Nossa casa se torna um lar perfumado, cheio de gente e amor. Criamos conforto, restauro e bem-estar. Poderoso, não é mesmo?
Falando no poder da cozinha, dia desses li um post da Gabriela Barretto, cozinheira e proprietária do Restaurante Chou e Futuro Refeitório, em que ela falava sobre o poder de conjurar ervas, temperos e fazer pratos restauradores como uma sopa; ela falava sobre o poder da bruxaria. Aquilo me marcou e voltei a ele enquanto escrevia este texto. Para mim, a cozinha é esse lugar virtuoso, cujo poder reside no fato da intenção ser tão importante quanto os ingredientes e a receita.
Obrigada por me acompanharem.
Até a próxima news,
Lena
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Para ler | Strega Nona
Falando em bruxaria e cozinha, me lembrei de Strega Nona (que em português foi traduzido como Vovó feiticeira), personagem de um livro infantil, escrito e ilustrado por Tomie de Paola, em 1975. Baseado em um conto popular, ele conta a história de uma bruxa calabresa que ajudava os habitantes da pequena vila com suas poções de cura e seu caldeirão de macarrão sem fim. Até que um dia seu ajudante resolve mexer em seu caldeirão e acaba por cobrir a vila de macarrão.
Na busca por tudo que remete a conforto e simplicidade, Strega Nona vem sendo resgatado neste outono de 2024 na internet, virando tendência no TikTok (que eu só soube ao ler o jornal, já que ainda não faço parte dessa rede).
Infelizmente, o livro em português não é mais vendido (talvez possa ser encontrado em sebos). Na internet, encontrei em outros idiomas, como esta versão em inglês por R$19. Também achei até uma versão animada, mas em espanhol. Para assistir, clique aqui.
Receitas calabresas alla Strega Nona
Em homenagem a Strega Nona, escolhi duas receitas do sul da Itália, sendo uma delas calabresa. A culinária de diversas regiões camponesas, sobretudo na área central e sul do país, são chamadas de cucina povera [cozinha pobre] dada a pobreza dos camponeses e a escassez de ingredientes. Assim, o povo sempre buscou o sabor por meio da simplicidade que lhes era imposta. Porém, o resultado não é por isso menos saboroso. Ao contrário, é onde encontramos alguns dos pratos mais calorosos, acolhedores e gostosos. Aliás, aproveito e deixo aqui uma dica de livro: Cucina Povera, de
, italiana que reside no interior da Toscana e autora da newsletter Letters from Tuscany [Cartas da Toscana]. Como ela bem resume: “a cucina povera não é apenas uma abordagem aos ingredientes e ao cozinhar; é a mais alta expressão da arte dell’arrangiarsi, a arte de se virar com o que você tem”.As receitas usam o que há de mais simples com ingredientes fáceis de serem encontrados e sempre dão preferência para o que a estação vigente tem a oferecer; sobras são sempre reaproveitadas e dão origem a outras delícias. A cucina povera é uma cozinha benevolente.
Até o dia que essa news foi enviada, a versão impressa (apenas de segunda mão) estava custando R$142 e a digital R$67.
Licurdia, sopa calabresa de cebola
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